Dali de cima, ela não deve nada a ninguém – nem a si mesma.

Sofia continuava olhando para a rua enquanto o carro negro se afastava. Não se preocupava muito com o que aconteceria depois pois estava morbidamente sem sentidos. Anestesiada, continuava observando as faixas brancas - agora tão sujas - do asfalto e com seus olhos se fechando tentava ao menos sentir o desejo de fugir dali.
As mãos apoiavam-se com calma na estrutura de madeira da sacada enquanto o vento balançava o vestido solto e suave.
Aquele perfume de lavanda que saia do quarto arrumado ganhava asas pela janela e acompanhava o dançar de sua roupa. E Sofia sofria.
Era como não sentir a faca cortar, mas desesperar-se ao ver o sangue descer a pele alva.
E então, lá estava ela ao lado dele no carro. Via todas aquelas árvores passando pela janela pequena do automóvel e aquele rosto fechado e pensativo. Não conseguia nem mesmo querer falar com ele, mas ali permanecia enquanto o olhar dele não se voltava à sua presença.
Os últimos raios de sol contrastando com as copas das árvores ao pé da estrada faziam um pisca-pisca estranho em seus olhos, mas isso não a impedia de contemplar a beleza daquele ao seu lado.
E então, fechava os olhos mais uma vez sentindo o perfume marcante - indescritível - que se espalhava a partir da pele dele.
Era como embriagar-se apenas por olhar o copo e desejar como nunca mergulhar em cada gota da bebida inebriante.
E ela então sentiu-se cada segundo menos presente em qualquer lugar que fosse e ao fundo ouvia aquela voz aconchegante cantar as melhores músicas para seu sono.
As mãos soltavam-se de qualquer lugar que fosse e o corpo relaxava.
Muitas cores ofuscavam sua visão e o calor que a presença e voz dele lhe trazia agora se transformava em um frio vazio, sem sentido, sem estimulo.
E tudo ficou negro como um completo universo sem estrelas.
Era como flutuar no nada, em um pesadelo sem acordar assustada.
Não havia medo, não havia razão de ser.
Mas havia aquela vontade de gritar, sem ter voz para tal.
***
E a lágrima escorreu do canto do seu olho, enquanto afastava-se da sacada. Voltava ao quarto sentindo a cortina balançada pelo vento tocar sua pele e seu vestido dançante.
Desistiu do que queria - simplesmente desistiu de tudo que queria. Não iria ver as faixas do asfalto mais de perto nem mesmo sentar-se ao lado dele no carro que ia embora para algum lugar desconhecido.
Nem mesmo abraçar aquele corpo que há tanto tempo evitava senti-la por perto.
Sofia sentou-se na cama macia, caminhou os dedos finos pelo lençol novo e encarou as paredes marcadas depois de tanta história.
Em cada canto do quarto um vestígio de amargura e loucura se mostrava, seja em garrafas semi quebradas e derrubadas ou nos cigarros acesos, apagados.
Fechou os olhos, na ânsia de ser para sempre e deitou-se ao programar o celular para despertá-la pela manhã.
Todo o resto, ficara para um dia de muita coragem...
... Ou maior covardia.
Onde talvez a sacada se movimentasse até as faixas do asfalto...
As árvores ao pé da estrada alcançassem aquele corpo sem vida...
E ele, o homem apoiado no volante, enfim sentisse a falta dela...
Saudade da Sofia, e sua sacada cor de nada.
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