
Há muito tempo tenho pensado na Sofia. Apenas não tinha percebido quem ela realmente era.
Ela é uma garota de sonhos... Muito parecida com o restante da população mundial.
Sofia era inocente, mas era levada pelos corredores com as mãos atadas nas algemas semi-enferrujadas. A cabeça baixa olhando os pés, a roupa quente e os riscos feios do chão, pensava. Os risos dos lados não a distraiam nem desviavam sua atenção suficientemente para não pensar no dia 22 de abril, não lembrar da porta e nem se desligar da escada.
Sofia deixou uma lágrima cair enquanto virava a esquerda, puxada pela policial firme, que com a cara fechada não deixava transparecer a insatisfação com a vida. A policial abria as grades de todas as entradas e saídas e com voz brava dizia para Sofia não tentar nenhum movimento brusco, mas Sofia - coitada de Sofia - não estava nem um pouco preocupada com movimentos, quem lhe dera se aquietar em um quarto escuro.
Marie, a policial, caminhava agora até o Delegado, conversaram poucas palavras até o momento que Sofia, ainda de olhos baixos e rosto quase coberto pelo cabelo ondulado cor caramelo, foi fixamente observada pelo Delegado Milton. Ele, que recém casado - pela terceira vez - lembrava-se constantamente de sua primeira mulher, principalmente agora ao ver a cor marcante do cabelo da prisioneira.
A ex mulher do Delegado Milton era advogada na época e sabe-se Deus porquê de um instante ao outro percebeu que não tinha nada do que realmente queria. Largou emprego, largou o esposo e as filhas e rumou para o Canadá.
Foi lá que ela faleceu um ano depois, de um câncer que lhe sugou todo o seu espirito juvenil.
Lá estava Sofia cercada por todas as pessoas e suas respectivas dores, lembranças, sonhos e ilusões. Em flashs rápidos apenas uma recordação se fazia presente atras daqueles olhos cor mel, que quase sempre cerrados enchergavam um filamento pequeno de chão - nada mais.
Marie entregou toda a papeleta, anotações de rotina para a escrevente e olhou atentamente para a prisioneira calada, que sentada no canto mais imundo da sala, aguardava qualquer decisão.
A escrevente, mascando o mesmo chiclete há horas, segurou os papéis como de costume e novamente arrumando-se na cadeira começou seu trabalho.
As unhas compridas sobre as teclas do teclado mostravam o quanto ela preocupava-se com a aparência. Se fixasse os olhos em seu rosto, poderia perceber a ausência de naturalidade - tudo estava coberto por uma camada de maquiagem misturada a frieza e falsidade.
Sofia continuava calada. Imóvel e sem piso.
Tudo girava, girava e girava. Como da ultima vez no carrosel, no parque que estava na entrada da cidade.
Aquele sorriso a embriagava com tanta doçura que lembrar disso era a única coisa que a conseguia acalmar - ou talvez deixa-la mais nervosa. Afinal, não existem mais sorrisos.
A escrevente levantou-se, abaixou e olhou a impressora enquanto conversava com si mesma.
Sofia, no canto imundo da sala, enfim levantou os olhos afundandos em um mundo preto e branco.
Katia, escrevente ali desde o inicio do ano não se dera conta da necessidade de pensar em outras pessoas até o instante que...
- Ei.
...
- Acho que é o cabo de energia, está meio solto. - Sofie falara com a voz alargada e sem ânimo.
Katia sorriu.
- Obrigada.
Naquela noite Katia sairia com um rapaz jovem, que lhe oferecera todo o amor do mundo e receberia apenas o amor de uma noite. Katia não era mulher de se prender a homem nenhum.
Marie passara pela sala, olhou a prisioneira e se despediu.
- Ailton está entrando em meu lugar agora. Trate de se comportar mocinha. - disse olhando para Sofia enquanto no íntimo o sentimento era a necessidade de voltar para casa, abraçar a mãe doente e esquecer que existem problemas a mais da porta para fora.
Já há muito com o que se preocupar dentro de seu próprio quarto.
Delegado Milton entrou, assinou os papéis que Katia conseguiu imprimir graças a ajuda de Sofia e olhou atentamente para Sofia enquanto lembrava do rosto sereno de Olga, sua ex esposa.
- Você tem um advogado.
Sofia não fez nenhum movimento, nem mesmo ocular. Não demonstrou empolgação nem nada.
Apenas respirou forte ao ver o advogado entrar.
Fábio viera de outro estado e há muito tempo não pegava um caso. Iria então defender Sofia com toda sua força, justamente agora que estava prestes a concluir uma família - iria ser pai.
- Bom dia Sofia.
Ela o olhou e ele sorriu. Sorriu por estar verdadeiramente feliz, afinal a vida estava indo bem, como planejara há um certo tempo atras.
- Vamos para uma sala isolada, conversamos um pouco e você me conta como aconteceu.
- Não aconteceu.
- Hum. Vamos conversar e tudo ficará certo.
***
Você já ouviu falar em deslocamento de tempo, personalidade e vivência pós-pré?
Bom... acontece o seguinte.
Imagine uma folha de papel, dobre-a ao meio e faça um furo. Você consegue então estar em dois pontos diferentes ao mesmo tempo, correto?
Não é exatamente disso que estou falando, mas falo do furo.
Através dele situações vão e vem o tempo todo.
Não pense você que tudo que você vive é realmente a realidade.
Afinal... o que você considera real?
***
- Como aconteceu Sofia?
- Vai dizer que você não sabe de nada Fábio?
- Não vamos brincar agora certo?
Katia nesse momento, desligara o computador e saira rumo ao encontro tão esperado.
As salas ficavam cada vez mais vazias.
- Não aconteceu ainda Fábio.
- Como não?
Sofia abriu o primeiro sorriso de muito tempo. E ali então via-se o espaço vago de um sorriso oco e sem brilho algum.
Um sarcasmo junto ao medo.
- Primeiro precisamos nos apaixonar, depois nos casar e só no final disso eu te empurro da escada.
- Como? - Fábio soltara a caneta prata da mão.
- No dia do seu aniversário. Estou cansada dessa história de você ter que falar com a Sara todo dia, ver a Vitória todo momento e não largar sua vida passada.
- Espere, como sabe o nome da minha filha que ainda nem nasceu e de minha esposa?
- Porque eu vou ser a sua próxima esposa.
- Você é maluca.
- Eu te empurrarei e você sabe porque eu farei isso. Não dá mais para viver lembrando. Portanto, paramos por aqui ok?
- Como assim?
- Não quero mais me apaixonar por você.
***
Imagine-se no controle de todas as suas ações.
Você vai e vem a todo momento que quiser e altera as configurações.
***
- Ok. - Fabio levantou-se. Fechou a pasta e foi embora.
Sofia encolheu-se por um tempo longo, chorou e sentiu que um pedaço de si mesma fora embora para sempre.
E realmente fora.
Porque no dia seguinte...
Nem havia acontecido.
E lá estava ela acordando na sua cama cor de rosa, livre como o vento...
Pronta para, em poucos dias, conhecer o homem que a deixará maluca por um ano e fará dela a pessoa mais feliz do mundo.
Ou pelo menos a deixará com a impressão de ser.
Esse homem não é Fábio.
Esse homem chama-se Milton.
• ¿ ○
3 comentários:
A Sofia tentou não demonstrar tanta tristeza no final. Nem sei porquê. Afinal de contas, isso não mudaria nada né?
E o Fábio, caba lesado, aceitou aquela história de bom grado - pareceu suficiente pra ele.
A doida da menina, onisciente como ela só (?), deixou que aquilo tudo parecesse natural, e mudou todo o futuro do pretérito. Bah...
Agora tudo - ou nada - fará sentido pro coitado do Milton, que viverá em pleno um tilt existencialista. Entretanto, mesmo que a previsão do fim do texto se confirme, ainda assim ele só poderá saber dela anos mais tarde, quando, misteriosamente, também se encontrará em duas dimensões diferentes, paralelas, que, pelo que pude perceber, podem nem chegar a existir.
Mas, como ela sabia de tudo? Seria ela algum tipo de Deus, ou apenas um living receiver?
Acho que esse, de fato, é o tipo de texto que pede outro. E com uma dose de cana.
Minha cabeça tah doendo!
x_o
Foi com falei a vc no msn, acompanhando o processo de criação:
O começo está muito bom, o desenrolar também está interessante, mas esse final deu um quebra total de expectativas. Ele é cômodo.
Já vi autores escreverem bons livros com temáticas simples e até bobas, acho que você poderia escrever mais sobre esse tema, que dá muito pano pra manga, dar umas guinadas na história e surpreender o leitor.
No mais, c ja sabe, continua escrevendo bem o piscológico de personagens.
Bjo!
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